'Parar de escalar seria trair Berna'
A montanhista Kika Bradford conta o drama de deixar o amigo Bernardo Collares ferido no Fitz Roy e descer sozinha para buscar ajuda
"Estou bem fisicamente. Durmo bastante, me alimento bem (ou o melhor que posso) e tenho me hidratado. Fiquei em El Chaltén por quase dez dias e agora estou no Rio, onde o carinho da família e dos amigos irão me ajudar nesse momento difícil.
Berna (o montanhista carioca Bernardo Collares, de 46 anos, cujo corpo jaz num platô de difícil acesso do Monte Fitz Roy, Patagônia Argentina) não era apenas meu parceiro de escalada, era o meu melhor amigo. Criamos uma parceria na montanha que transcendeu as paredes rochosas: trabalhávamos juntos pelo montanhismo, compartilhávamos ideias e ideais, viajávamos juntos, planejávamos aventuras... Nada nos prepara para uma situação e uma decisão assim (deixar um companheiro ferido no alto da montanha e descer para pedir socorro). Sim, era a única opção, mas isso está longe de ter sido fácil. Berna não podia se mover, a dor era muito grande. Antes de eu dizer qualquer coisa ele falou: ‘Kika, daqui eu só saio de helicóptero. Você precisa descer sozinha. Me deixa aqui e vai buscar ajuda’.
Na caminhada de aproximação ao Fitz Roy, conversamos sobre milhões de coisas. Mas, agora, lembro apenas de nós dois rindo de nós mesmos, de quando, três anos antes, íamos fazer a primeira escalada juntos na região e não conhecíamos o lugar. Rimos de nossa estratégia da época, hoje totalmente inadequada. Mas aí a subida começou e o papo ficou para trás, para economizarmos energia. Na escalada, as conversas eram mais voltadas à escalada em si - os movimentos, o avanço, as decisões, o caminho a ser tomado e, claro, a paisagem maravilhosa.
No primeiro dia, andamos nove horas até a base da via de escalada e escalamos até mais ou menos 9 da noite, quando chegamos num bom lugar para bivaque, ou seja, para dormir. No dia seguinte, levantamos às 5h45 e começamos a escalar mais ou menos às 7h20. Escalamos até as dez da noite (quando ainda tem luz lá), e chegamos a outro lugarbom para bivaque, bem protegido do vento.
No dia 3 começou a nevar um pouco à noite e acordamos sem poder ver nada por causa das nuvens. Berna me olhou e falou: ‘Só para garantir que pensamos a mesma coisa, nossa decisão é descer, não é?’. Eu disse que sim, é óbvio. A nossa melhor opção era chegar a uma outra via, ao lado, mas para isso precisávamos subir um pouco mais. Subimos para onde não se enxergava nada. Esperamos um pouco e, como o tempo não melhorava, decidimos descer pela própria via em que estávamos. Eram 8h45.
(O grampo que prende a corda de Bernardo à rocha se solta e ele despenca de uma altura de 15 metros. Na observação da amiga, ele fratura a bacia na queda e fica desacordado. Nos momentos de lucidez, se queixa de muita dor e pede para ela ir buscar ajuda.)
Na descida depois do acidente, não me permitia pensar em muitas coisas além dos procedimentos necessários para me manter segura. No momento em que desci não havia mais como voltar para onde estava Berna. Minha única opção era fazer isso o mais rápido possível, sem perder a calma, para buscar ajuda para ele. Descia pensando em acionar o resgate, mas não pensava muito emocionalmente, porque isso apenas deixaria a minha situação mais precária.
Quando parei eram 22h40 e as últimas luzes do dia já estavam indo embora. Parei nesse dia apenas porque não sabia mais por onde seguir. Eu só pensava em ir rápido para acionar o resgate. ‘Dormi’ na montanha, no mesmo lugar em que tínhamos ficado no primeiro dia de escalada. Não comi ou bebi praticamente nada durante dois dias.
No segundo dia de descida, 4 de janeiro, muitas vezes tive vontade de parar, pois não tinha mais forças. Contudo, me obrigava a continuar por saber que simplesmente não podia parar. Eu estava no meu limite físico, emocional e mental. Cheguei à base da via às 14h45 do dia 4 e continuei descendo até o glaciar. Na medida em que tinha certeza de que não precisaria mais dos equipamentos, ia largando eles pelo caminho para seguir mais leve e com mais segurança. No final, terminei com poucos equipamentos, basicamente o que me manteria viva se eu precisasse fazer outro bivaque, além de uns poucos mosquetões, uma camalot 0.75 (equipamento que ajuda o escalador a se fixar em fendas na rocha) que guardei por valor sentimental e algumas coisas do Berna que tinha levado comigo para o caso de precisar.
No glaciar, mais ou menos a quatro horas da base e ainda a cinco horas de El Chaltén, encontrei o Juan, meu namorado, que tinha ido me buscar. Foi nessa hora que me permiti chorar pela primeira vez. Não me considero uma pessoa muito religiosa, mas sei que forças maiores estavam comigo ali. Pedia a todos os deuses que conheço e aos que não conheço também, mais a todos os anjos da guarda, para me ajudarem. E sei que me ajudaram. E sei que Berna, uma pessoa de luz e que tinha um campo energético muito forte, também me ajudou.
Sou arqueóloga de formação, com mestrado em antropologia e foco em desenvolvimento de equipes em ambientes de atividades ao ar livre. Fui guia de montanha profissional e tive uma empresa de escalada. Comecei a escalar em 1998 e escalar é uma fonte de aprendizado na minha vida. Escalando aprendo quem sou, desenvolvo minhas habilidades e trabalho meus valores. Não penso em parar de escalar. Isso seria trair quem eu sou e ir de encontro àquilo que me unia a meu amigo Berna."
DEPOIMENTO POR E-MAIL A CHRISTIAN CARVALHO CRUZ
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,parar-de-escalar-seria-trair-berna-,666636,0.htm
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domingo, 16 de janeiro de 2011
terça-feira, 10 de agosto de 2010
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