quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A aventura da liberdade

Depois de 20 anos no Himalaia, muitos deles como guia de montanha, Morgado decidiu escalar o Everest - e, em maio, tornou-se o mais velho brasileiro a chegar ao topo do mundo. "A descida é o momento de maior perigo. Não é um risco palpável", diz.Por Ronaldo Ribeiro
Foto de Theo Ribeiro


Na manhã de 17 de maio, Manoel Morgado contemplou um raro e deslumbrante horizonte de montanhas no Himalaia, sentindo-se de fato bem perto do céu. Aos 53 anos, tornara-se o mais velho brasileiro a galgar o cimo dos 8 850 metros do monte Everest.

Médico de formação, o gaúcho Morgado desiludiu-se da rotina dos consultórios na cidade de São Paulo para lançar-se em uma vida nômade em 1989. Praticou ioga na Índia e no Nepal, converteu-se ao budismo, perambulou pelo Sudeste Asiático e foi parar na Austrália, onde experimentou uma série de subempregos. Descobriu assim que podia viver, e bem, em qualquer lugar. Quando voltou ao Brasil, em 1992, foi apenas para abrir uma empresa de expedições, na qual lidera até hoje grupos de caminhadas e escaladas na América do Sul, na Rússia, no monte Kilimanjaro (Tanzânia), na Antártica e na Ásia.

Mochileiro em tempo integral, Morgado não tem endereço fixo, família próxima, rotina doméstica ou contas a pagar. Depois de 20 anos admirando as arestas nevadas do Himalaia, decidiu que era hora de escalar o Everest. Chegar ao topo do mundo, para ele, não representou nenhuma vitória esportiva - foi, isso sim, mais uma etapa luminosa na jornada de um homem de espírito livre. "Não tenho inquietude sobre desafios difíceis. Busco simplesmente experiências prazerosas", diz.

Descreva a geografia do topo do mundo.
O cume do Everest é um lugar simples: uma plataforma de rocha de declive suave, com uma área de uns 100 metros quadrados. No meio dela fica um altar de pedra, repleto de bandeiras budistas de oração. Também há uma área em que os escaladores recolhem pedrinhas soltas para levar de recordação. Para quem sobe pelo Nepal, como eu, o altar é o lugar de onde começamos a avistar quem está chegando pelo Tibet. É nesse instante que fica evidente que o Everest é uma pirâmide: uma face é nepalesa; as outras duas, tibetanas. A divisa entre o Nepal e a China passa exatamente sobre o topo.

Quanto tempo você ficou lá?
Quinze minutos. Cheguei às 8 horas, em ponto, em 17 de maio de 2010. Arrependo-me de não ter ficado mais, mas havia a previsão de que, de tarde, chegaria um vento forte. Tirei fotos, fiz uma prece de agradecimento e comecei a voltar. A descida é o momento com maior número de óbitos no Everest – por isso é mais tensa que a própria ascensão. E não é um risco palpável: morre-se de exaustão, por uma tempestade súbita.

Você estava bem? Qual a sensação no cume?
Cheguei ao pico em um dia benigno, sem brisa, com a reserva de meus três cilindros de oxigênio resguardada. A despeito de uma diarreia, que me obrigou a evacuar duas vezes - uma delas sem as luvas, a 8,7 mil metros, com risco grande de congelamento dos dedos -, eu me sentia forte. Sofri apenas de sede. Para economizar peso, levei 1 litro para 15 horas de escalada no dia do cume. Na descida, sedento e inalando o oxigênio suplementar muito seco, a impressão era de que eu tinha uma bola na garganta. Não conseguia engolir nem a saliva.

Foi um preço que paguei pelo atribulado dia anterior, que deveria ter sido de hidratação e descanso no acampamento 4, a 7 950 metros. Chegamos nele às 14 horas, com plano de sair para o cume às 21. Mas nuvens pesadas envolveram as barracas, e meu grupo foi tomado por uma tremenda apatia. Ficamos deitados, incrédulos, pensando no pior: a hipótese de ter de voltar ao acampamento 3, a 7,3 mil metros, abortando o pico até uma próxima janela de bom tempo. Às 18 horas, por sorte, o clima mudou, mas então eu já estava no limite da ansiedade, e apenas pude me vestir para sair. Ou seja: nem dormi nem me hidratei. Naquele dia, tomei chá pela manhã e comi alguns cereais. Na altitude o apetite desaparece. No dia do cume eu estava há praticamente 72 horas sem uma refeição sequer.

Você subiu pela face nepalesa, na via dos pioneiros Edmund Hillary e Tenzing Norgay, ainda a mais usada. Por que a opção?
Considero-a mais bonita, e isso tem a ver com a formação do Himalaia. Há 50 milhões de anos houve o choque de placas tectônicas que moldou o relevo da cordilheira: a placa do subcontinente indiano avançou sob a da Eurásia. No ponto de colisão surgiu uma linha de montanhas que se estende desde o Mianmar até o Paquistão. O Tibet, que era um mar interno, virou um vasto e árido planalto. Já no lado meridional da cordilheira restou uma paisagem mais complexa, acidentada. É um gigantesco degrau: desde o primeiro enrugamento do Himalaia, ao sul de Katmandu, no Nepal, a altitude oscila de menos de 3 mil metros até a faixa dos picos de 8 mil metros em um intervalo de uns 60 quilômetros. A beleza cênica é incrível, mas é um terreno ruim – tanto que só se alcança o campo-base do Everest, a 5,3 mil metros, em uma caminhada de dez dias.

Depois de chegar ao Everest, qual a motivação de um alpinista?
Não tenho a pretensão de fazer as 14 montanhas com mais de 8 mil metros nem os Sete Cumes [os mais altos de cada continente]. Apenas aos 52 anos escalei o Cho Oyu, de 8 201 metros, e, aos 53, o Everest. E não se aventura em mais que uma montanha de 8 mil metros por ano. Assim, mesmo que eu quisesse fazer as 14, completaria o circuito aos 66 anos - algo muito complicado. O risco de mortalidade nos picos de 8 mil metros se mede assim: número de conquistas do cume versus número histórico de mortes. No Everest, esse percentual é de 4,5%. Já no K2, no Nanga Parbat e no Annapurna é de 24%. São montanhas fatais. Por isso divirto-me também com as escaladas técnicas. Em novembro, devo subir o Ama Dablan, de 6,8 mil metros, no sul do Nepal, considerada a montanha mais bela do planeta - disputa essa honraria com o Alpamayo, no Peru.
Catorze anos depois da tragédia de 1996, quando 15 alpinistas morreram na montanha, o que mudou no Everest?
Aquela temporada mortal, registrada no best-seller No Ar Rarefeito, fez prevalecer a noção de que, uma vez dentro de uma expedição comercial, tendo pago em média 70 000 dólares por uma vaga, você vai chegar lá em cima, pois toda a sua segurança estará a cargo de seu guia. Essa é uma ideia falsa. Paguei 40 000 dólares por uma vaga em um time de cinco escaladores experientes - o chefe da expedição, escocês, e mais três malteses. E, no dia do cume, estive com o líder só duas vezes: lá em cima e na descida. Cada pessoa tem o seu ritmo, e não se pode parar para esperar o outro, sob o risco de congelar. No Everest, seja no lado nepalês, seja no tibetano, há um único caminho para as expedições, e todos estão submetidos a ele, presos a uma corda fixa. Apesar disso, em última instância, você está sozinho.

Neste ano, um caso notório foi o da inglesa Bonita Norris, de 22 anos, que se tornou a mais jovem mulher de seu país no cume. Sem experiência, ela teve problemas na descida e empacou, exaurida, na plataforma Balcony, a 8 440 metros. O líder de seu grupo já estava no acampamento 4 quando chegou o pedido de socorro pelo rádio. Às 17 horas, os sherpas tiveram de expor a vida deles ao perigo de subir quase anoitecendo e resgatá-la, o que aconteceu apenas às 21. A sorte foi que o tempo continuou estável. Se tivesse mudado, ela estaria lá até hoje.

O Everest está, então, ainda mais congestionado?
Em 2010, mais de 300 estrangeiros estiveram no cume. Nos 57 anos desde a conquista, em 1953, foram 5 mil pessoas. Nos últimos cinco anos, subiram mais escaladores que nos primeiros 52! O governo nepalês liberou; não há mais quota de alpinistas na primavera, em maio. Quem controla isso agora são as companhias que organizam as expedições comerciais.

Essa comercialização afeta a vida do povo da montanha?
Acho que a atual geração dos sherpas está conseguindo trilhar o caminho do meio, conforme prega o budismo. Adotam o montanhismo como atividade econômica, sem abrir mão de suas tradições. Eles preservam seus festivais, sua língua. A religião é seguida da mesma maneira de seus antepassados e comanda cada acontecimento de sua vida – seja começar um negócio, seja a construção de uma casa, seja o nascimento de um filho. Então, creio, a cultura permanecerá viva. Nos trekkings que guio, sempre admirei a sinceridade deles, o espírito de grupo, a atenção que dedicam aos outros, sem ser servis. Procurar ajudar é algo inato neles. O sherpa que me acompanhou no Everest, Padawa, já esteve 14 vezes no topo.

De que maneira o budismo influenciou sua jornada?
O povo Sherpa crê que, se você não tiver conduta moral e ética na montanha, não sairá vivo de lá. Antes de subir, estive com o lama Geishe Rimpoche, no monastério de Pambuche, um dos mais altos do planeta, a 4 mil metros. Ele me recomendou: “Não julgue; não pense mal dos outros; mantenha o coração puro”. Tive um desentendimento com o líder argentino da expedição em que estava a minha namorada [a guatemalteca Andrea Cardona, primeira mulher centro-americana a chegar ao topo do mundo]. Estive com isso em mente o tempo todo, preocupado com ela. Sempre tentando não julgar. É preciso foco no Everest. Fisicamente, é um teste muito duro. O perigo ronda a todo instante. Então, emoções negativas podem tirar a sua paz.

Como é viver sem casa, nômade, sem rotina diária?
Não tenho casa desde que saí do Brasil, há 21 anos. Moro em hotéis, pousadas e albergues ou sou hospedado por amigos. Tenho sempre uma mala a tiracolo. Meu endereço mais fixo é a casa de um colega em Katmandu, onde guardo parte do meu material de escalada. É uma cidade na qual me sinto bem.

Trabalho seis meses por ano e tiro os outros seis de férias. É quando viajo, escalo, faço meus projetos – tenho treinado para, no verão de 2012, chegar ao polo Sul, com esquis que serão puxados por uma pipa de kitesurf presa à minha cintura. Guio, em média, oito grupos por ano, sendo 20 dias em cada viagem. Isso já me consome 160 dias inteiros, 18 horas por dia. Como não tenho despesas fixas - minhas únicas contas são as do contador da minha empresa e as do garoto que cuida da minha página na web -, aquilo que eu ganho nos meses de trabalho me permite viver o resto do ano. Essa é a minha matemática financeira. Nunca me ocupei em guardar dinheiro.

A liberdade tem um preço?
Não se pode fantasiar a ideia da liberdade absoluta. Por estar sempre viajando, quase nunca posso dispor da companhia de meus amigos. Se estou triste e quero ir a um bar conversar, não posso - estou longe. Outro exemplo: eu gosto de andar de moto, mas, obviamente, não posso ter uma. Então, peguei o "mau hábito" [rindo] de ir sempre a uma loja, em qualquer canto do planeta, e fazer um test drive. Minha vida é um treino constante de impermanência. Um exercício de desapego.

Fuente: http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic
Por: M.Marques -  http://andesmarques.blogspot.com/
milton@mxb.com.br

3 comentários:

André Zancanaro disse...

Tudo tem um preço e quando se tem filhos ele fica CARO DEMAIS!

Anônimo disse...

Fala serio Zanca seu problema são seus filhos!!

André Zancanaro disse...

Filho não é problema, o problema é pagar as contas! hahahahahaha...