segunda-feira, 20 de junho de 2011

Matéria da National Geographic sobre escalada Solo

Sem cordas, Dan Potter escala a Glacier Point, no mais radical parque nacional dos Estados Unidos

Audácia. Desafio. Liberdade.

Uma nova geração de superescaladores se recusa a aceitar limites no Yosemite.

Por Mark Jenkins
Foto de Mikey Schaefer

Em uma luminosa manhã de um sábado de setembro, um jovem está grudado na face do Half Dome, um paredão de granito de 650 metros a prumo no coração do vale do Yosemite. Sozinho, tão distante do chão, talvez só as águias reparem nele. Agarrado pela ponta dos dedos a uma fenda estreita como uma moeda, Eminem bombando no iPod, Alex Honnold está tentando algo que ninguém jamais ousou: escalar sem corda a via Regular da face noroeste do Half Dome. A 30 metros do topo, algo potencialmente desastroso lhe acontece: sua confiança sofre um leve abalo.

Por duas horas e 45 minutos, Honnold manteve o foco, executando com perfeição centenas de movimentos atléticos, um após outro, sem hesitar. No esporte de escalada no estilo livre solo, em que se sobe munido apenas de um saco de magnésio e sapatilhas especiais - sem corda, sem equipamento, nada que mantenha o escalador na parede a não ser convicção e habilidade -, a dúvida é um perigo. Se a ponta dos dedos de Honnold não conseguir segurá-lo, ou até se apenas acreditar que não conseguirá, ele despencará para a morte. Agora, com a magia desfeita pela fadiga mental e pela lâmina polida como vidro que o espera, Honnold fica paralisado. "Meu pé não vai se sustentar nisso", pensa ele, fitando uma saliência escorregadiça na rocha. "Pronto, me ferrei."

Dois dias antes, quando ascendera a essa mesma via com a ajuda de uma corda, Honnold não se sentira assim. A subida correra tão bem que ele teve certeza de que seria capaz de fazê-la em livre solo, apesar da lendária dificuldade na rota. Na primeira vez em que o Half Dome foi escalado, em 1957, o californiano Royal Robbins e seu grupo levaram cinco dias. Para chegar ao topo, 1 475 metros acima do fundo do vale, fincaram na rocha cerca de 100 pitons, finas cunhas de aço, nos quais prenderam cordas para a subida - um estilo conhecido como escalada artificial. Uma geração depois, em 1976, Art Higbee e Jim Erickson, do Colorado, escalaram o Half Dome quase totalmente no estilo livre: usaram apenas as mãos e os pés entalados nas fendas, e cordas só para amparar em caso de queda. Levaram 34 horas. Se Honnold escalar o Half Dome no estilo livre solo, a parada vai ficar bem mais alta.

Agora, agarrado ao granito, ele hesita: com suavidade, passa magnésio em uma mão, depois na outra, ajusta os pés com toda atenção em apoios quase invisíveis. E então, de repente, volta a mover-se, avança uma perna, esfrega a sapatilha na saliência escorregadia. O pé adere. Leva a mão a outro apoio, crispa os dedos na minúscula fissura. Dali a alguns minutos está no topo.

"Reanimei-me porque não havia outra saída", me conta Honnold mais tarde, com uma risada de menino. "Avancei, confiei naquele apoio terrível, e me libertei da prisãozinha em que eu estivera em silêncio por cinco minutos."

A notícia de sua escalada improvável do Half Dome em duas horas e 50 minutos no estilo livre solo corre o mundo em um átimo. Pasma os escaladores, alvoroça os blogueiros. Assim, nesse cálido dia de outono de 2008, o rapaz vindo de um bairro rico da cidade californiana de Sacramento, com seu jeito de nerd, que ainda gosta de jogar palavras cruzadas com a mãe, estabelece um recorde na elite das elites dos escaladores.

Esta é a magia do Yosemite: forjar heróis. Não importa de onde venham, dos Alpes ou dos Andes, todos os escaladores que se prezam anseiam por uma peregrinação ao "vale" para medir forças com seus gigantes: El Capitan, uma tremeluzente proa de rocha tão imensa que faz os enormes pinheiros de 30 metros de altura em sua base parecerem miniaturas; Cathedral Rocks, uma fortaleza escura, eternamente nas sombras; e Half Dome, uma maçã de granito partida ao meio, com sua altiva face noroeste provocando os mais arrojados alpinistas do planeta. Escalar no Yosemite é um rito de passagem.

Fiz minha primeira viagem ao vale nos anos 1970, adolescente esfomeado do Wyoming, pegando carona com uma corda de escalada e uma nota de 20 dólares no bolso. Eu crescera nas High Plains, testara minhas habilidades nas Rochosas e queria acreditar que estava pronto. Uma família, vinda do Iowa em uma perua com três crianças e um golden retriever, deixou-me em um prado à sombra de El Capitan, e eu fiquei ali, olhando boquiaberto para o alto por uns 15 minutos.
Fui me alojar no famigerado Campo 4, o anárquico acampamento para escaladores do Yosemite. Na época, reinavam lá as calças boca de sino, as bijuterias de contas e os sacos de dormir esfarrapados. Os escaladores eram rebeldes cabeludos e farristas, viciados na independência e na adrenalina de escalar grandes rochas - portanto, uma pedra no sapato dos guardas do parque, que a turma chamava de "os babacas".

O sentimento era recíproco. Em uma ocasião, meus amigos e eu chegamos esfalfados ao acampamento à meia-noite, depois de escalar uma grande parede, e descobrimos que os guardas tinham confiscado nossa barraca porque havia expirado o prazo de nossa licença para acampar. Dormimos no chão naquela noite, e dali por diante adotamos o "bivaque na moita": abríamos o saco de dormir na floresta ou no meio das rochas, dormíamos sob as estrelas e voltávamos às paredes antes de o dia raiar (uma prática ainda comum). Coletávamos latas para vender e vivíamos de manteiga de amendoim e cerveja barata, felizes da vida.

Mas eu era um turista no Campo 4, e logo retornaria ao Wyoming. Os anais do Campo 4 eram feitos por quem vivia ali o verão todo, todo verão, os reis da boa vida, sempre testando o limite da própria capacidade e da tolerância dos funcionários do parque. Fábulas sobre o Campo 4 ainda são tema de conversa ao pé da fogueira no mundo todo. Um dia, o avião de um traficante de drogas caiu abarrotado de fardos de maconha e maços de dinheiro nos confins das montanhas. A maltrapilha rapaziada do Campo 4, em um vaivém de sandálias pela neve, deu sumiço no butim. Por uns tempos depois disso, a bisteca substituiu a sardinha em lata. Um escalador saiu do Yosemite em um calhambeque escangalhado e voltou dali a dez dias ao volante de um luxuoso conversível vermelho. Houve quem se mandasse para os Alpes com sonhos de grandeza, mas não fosse além de um bordel em Bordeaux, retornando no ano seguinte gordo e sem um tostão furado sequer.

Isso foi antes. As coisas mudaram. Quem chega hoje a um acampamento no Yosemite tanto pode encontrar um malandro molambento como um sócio de um renomado escritório de advocacia americano. Perambulando pelo Campo 4 certa manhã, ouço uma infinidade de idiomas - tcheco, chinês, tailandês, italiano - e vejo escaladores de todas as classes sociais. Um engenheiro alemão, sorrindo de orelha a orelha, acaba de completar sua escalada de cinco dias no El Cap. Uma dinamarquesa descalça, de argola no nariz, dreadlocks e tatuagem, treina em uma corda bamba, amarrada em duas árvores, a 1 metro do chão. Um casal americano ensina seus dois filhos pequenos a escalar. A modalidade agora é popular. E, em contraste com os velhos tempos, o número de mulheres nas rochas é quase igual ao de homens - uma bem-vinda mudança, que se reflete nas proezas de uma pessoa: Lynn Hill.

"Comecei a frequentar o Campo 4 aos 15 anos", conta Lynn, hoje com 50. "Eu era a única garota ali." Fora ginasta na escola, e escalava com ousadia, trazendo graça e agilidade ao esporte. Aos 17 anos, Lynn já tinha escalado o Half Dome. "Lynnie era uma aberração genética", elogia o escalador John Long. "Nunca havia visto maior força, maior obstinação e maior talento em nenhum outro escalador. Nela, a proporção entre peso e força era absurda."

Depois de aperfeiçoar sua habilidade no Yosemite, Lynn encarou novos desafios e venceu dezenas de competições na Europa. Em 1994, com 33 anos, voltou ao Yosemite com um plano audaz: escalar no estilo livre a Nose de El Capitan em um só dia. "O pessoal do contra dizia que era impossível", conta ela. "John, não." A Nose, uma linha de 889 metros no El Cap, talvez seja a mais famosa rota de escalada do mundo. Subi-la exige torcer - não sem dor - as mãos, os pés e todos os dedos para enfiá-los em fendas verticais. Em 1975, Long, com Jim Bridwell e Billy Westbay, completou a primeira ascensão em um dia à Nose, embora tenha recorrido ao estilo artificial para transpor uma intimidante projeção de rocha chamada de Great Roof ("Grande Teto") a dois terços do caminho.

Decidida a escalar em livre o Great Roof, Lynn pendurou-se pelos dedos das mãos às minúsculas agarras, roçando os pés na parede escorregadia. Com uma técnica que ela chama de "passos de dançarino de tai chi", conseguiu transpor o teto apenas impulsionando o corpo para os lados com os dedos. Atingiu o topo de El Cap em 23 horas - um feito que muitos consideram a mais sensacional façanha em escalada do século 20.

Seja qual for sua habilidade, todo escalador chega ao Yosemite com um sonho: uma rota que ele anseia por vencer. Quando estive lá pela primeira vez, meu alvo era o Steck-Salathé da Sentinel Rock, uma rota que requer entalar o corpo inteiro em uma fenda larga. Infelizmente, na ocasião a parede era grande demais, e meu parceiro e eu éramos muito inexperientes. Foi um vexame: tivemos de voltar no meio da subida.
Agora, 30 anos depois, Dean Potter se oferece para escalar essa via comigo. O compenetrado Potter, de 38 anos, é um dos últimos rebeldes cabeludos do vale. Tem físico de Tarzan e renome por suas escaladas sem corda e seus temerários base jumps, saltos de penhascos com paraquedas. Mas ele me dita regras. Não poderei levar comida, água, mochila nem capa de chuva - nem sequer capacete. "É o único jeito para avançar rápido", diz.

A velocidade tornou-se o credo dos novos superescaladores. "Vamos tirar de letra", promete Potter. Para ser mais rápido, ele vai descalço no penoso trecho de matagal que leva à face do penhasco. Na base, depois de entrarmos nas sapatilhas justas, enrolamos a corda e começamos a escalar a rota de 457 metros como macacos, espremendo o corpo em chaminés, usando as agarras nas rochas como se fossem degraus em uma escada de mão. Chegamos ao topo em menos de quatro horas. Minha sensação de que voamos até ali vira fumaça quando Potter comenta que costuma levar uma hora para escalar a via em livre solo.

Essa é a tendência. A maioria das rotas já é bastante conhecida, e as habilidades e os equipamentos foram muito aprimorados. Por isso, velocidade, e não exploração, é agora o principal critério para avaliar o talento de um escalador. Em 1950, quando Allen Steck e John Salathé escalaram pela primeira vez a rota batizada com o nome deles, demoraram cinco dias. A primeira escalada da Nose foi um esforço de 47 dias, preparado durante um ano e meio, de 1957 a 1958, por Warren Harding. Hoje, os grupos lerdos demoram de três a cinco dias, pernoitando em portaledges, minúsculas tendas penduradas na parede. Os rápidos sobem em um dia. O recorde na Nose foi de inimagináveis duas horas, 36 minutos e 45 segundos, estabelecido em novembro passado por Potter e Sean "Stanley" Leary.

Escalar, nos anos 1970, era aventura. No século 21, evoluiu para ginástica na vertical. Os escaladores de elite são atletas disciplinados que treinam muito. Focados como Lance Armstrong ou Michael Phelps, eles são obcecados pelo peso, pois completar, ou "mandar", uma via é um desafio à gravidade. Observo os 30 escaladores que aparecem em uma festa que Potter deu em sua cabana. Nos velhos tempos, uma reunião dessas seria uma orgia de varar a madrugada. Hoje, não. Ninguém fuma, quase ninguém bebe. Potter serve um prudente arroz com legumes, quatro escaladores trazem torta de maçã feita em casa e todo mundo vai dormir antes da meia-noite, pois, no dia seguinte, cada um tem trabalho a fazer em algum "projeto".

Alex Honnold e Ueli Steck estão nessa balada. Steck, renomado suíço, é o epítome da nova raça. Segue um programa rigoroso de exercícios e dieta. Quando treina, esse atleta de 34 anos percorre espantosos 3,5 mil metros verticais por dia. Depois de bater recordes de velocidade nas três grandes faces norte dos Alpes - a Eiger (2h48), a Matterhorn (1h56) e a Grandes Jorasses (2h21), Steck veio ao Yosemite para aperfeiçoar sua técnica em penhascos de granito. Em 2010, ele e Honnold dispararam ao topo de El Cap em três horas e 50 minutos. Seu sonho: levar a escalada veloz ao Himalaia. "Nunca se fez rota técnica em um pico de 8 mil metros no estilo alpino", diz ele, referindo-se à modalidade "leve e rápida". "Essa é a minha missão."

Em contraste com profissionais europeus como Steck, que contam com generosos patrocínios de empresas, a maioria dos americanos vive na pindaíba. Muitos ganham apenas o suficiente para dormir em uma van e comer. Aliás, por causa da restrição de sete dias no Campo 4, muitos vivem em tempo integral dentro de veículos no Yosemite. Kate Rutherford, de 30 anos, e Madeleine Sorkin, de 29, que juntas foram as duas primeiras mulheres a escalar no estilo livre o Half Dome, moram em vans. Honnold também. Tommy Caldwell, de 32 anos, um dos melhores escaladores em granito dos Estados Unidos, fica em sua van quando está no Yosemite - embora seja profissional desse esporte desde os 16 anos.

E, apesar de tudo, eles voltam. Desde 2007, Caldwell trabalha uma nova rota próxima à via Mescalito em El Cap, que talvez seja a mais difícil escalada livre em paredão no mundo. "Peguei minha primeira corda aos 3 anos", diz ele. O pai de Caldwell era guia de montanhismo; Tommy lembra que, quando menino, ficava deitado em um prado em El Cap, vendo seu pai escalar como outros garotos gostam de ver seu velho jogar bola. "O Yosemite tem magnetismo", finaliza. "Enlouqueço no momento em que olho aquelas paredes."

Cerca de 4 milhões de pessoas por ano visitam o Yosemite, e apenas alguns milhares são escaladores. Mas essa minoria ainda é o coração pulsante do vale. "Vim para cá no segundo ano do ensino médio e nunca mais voltei para casa", conta Ron Kauk, de 53 anos. "Este lugar foi minha educação. Se você permitir, ele pode incutir em você um sistema de valores." Com esse objetivo, Kauk fundou o programa Sacred Rok, que leva crianças especiais ao parque e as ensina a pensar e sentir por si mesmas. "Se você passa uma garrafa d’ água a seu parceiro a 300 metros do chão", diz ele, "faz tudo para que ele consiga pegá-la com firmeza.

Kauk estabeleceu algumas das rotas mais árduas do vale, quase sempre com corda - uma razão de ele não estar entre os 83 mortos ali desde 1955. Em contraste, em livre solo não há margem a erros. "Bobeou, morreu", vai logo avisando Dean Potter. Escalar sem cordas acabou por ceifar dois dos melhores solistas do Yosemite: Derek Hersey, um britânico que caiu da Steck-Salathé em 1993, e o ex-parceiro de escalada de Kauk, o californiano John Bachar, que morreu em 2009 quando escalava próximo aos lagos Mammoth.

Em minha última noite no vale, passeio pelo Campo 4 ao pôr do sol. Paira o aroma de seiva de pinheiro e fogueiras, e duas estrelas acabam de aparecer. Há risadas. Alguém toca violão. Dois rapazes organizam seu equipamento enquanto conversam, sérios, sobre o desafio na parede amanhã cedo. Em uma mesa de piquenique, três mulheres com os nós dos dedos sangrando, de tranças e lanterna na cabeça, choram e se abraçam depois de uma escalada de três dias.

Como as que fizeram a peregrinação antes delas e as que virão depois, essas pessoas vieram ao Yosemite para medir forças com a rocha. E elas sabem que essas paredes são mais que montanhas: são espelhos gigantes que refletem sem dó o que cada escalador tem por dentro.

Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-135/aventura-yosemite-628797.shtml?page=3

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